Disciplina – Nosso mantra nessa nova era da bolsa

A Versa adotou uma postura seletiva perante a onda de ofertas de ações no Brasil. Abaixo, explicamos porque não participaremos (pelo menos por ora) da maior parte das ofertas disponíveis hoje. Quer saber mais sobre como avaliar uma ação estreante na bolsa? Continue lendo.

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A forte queda dos juros no Brasil nos últimos anos trouxe o que o país não via há quase 15 anos: uma onda de ofertas de ações. Uma oferta de ações consiste de uma venda de participação acionária em uma empresa para o público geral. As ofertas viabilizam duas coisas: (1) saída para acionistas que queiram se desfazer de posições na Cia em questão; e/ou (2) financiamento para iniciativas de crescimento que a Cia queira perseguir. No primeiro caso, o capital levantado vai para acionistas da empresa. No segundo caso, vai para o caixa da empresa. Ofertas de ações podem ser feitas tanto por empresas com capital aberto quanto por empresas de capital fechado (ofertas iniciais). Enquanto escrevemos, há 83 ofertas de ações em análise na comissão de valores mobiliários. De acordo com o Bank of America Merrill Lynch, a lista de ofertas já encaminhadas para 2020 pode movimentar R$160 bilhões. Nosso trabalho como investidores é selecionar, entre as muitas opções, as ofertas que realmente representam boa oportunidade de investimento. Aqui na Versa, o processo de avaliação de ofertas iniciais de ações segue o mesmo rigor da análise de empresas já listadas. Buscamos identificar os vetores de geração (ou destruição) de valor da empresa. Em seguida, avaliamos se o preço da ação condiz com esses vetores. Investimos nas empresas com grande potencial de geração de valor frente ao preço das suas ações. Na onda atual de ofertas, chama atenção o apetite de investidores por ações com valuation elevado, mesmo se considerarmos um forte potencial de crescimento para os negócios no futuro.

Vetores x Valuation – Não seja vítima dessa briga

Separamos nossas teses de investimentos nessas duas caixas para que os pontos fortes de uma não escondam os pontos fracos da outra. Não podemos deixar uma história bonita de crescimento ofuscar um preço caro para participar. Igualmente, não podemos nos enganar com value traps, ações que negociam a preços baixos justamente pela falta de vetores de geração de valor no futuro. A safra atual de IPOs (ofertas iniciais de ações) está repleta de casos do primeiro cenário: histórias aparentemente bonitas no que se refere a vetores de geração de valor, porém com preços que já refletem esse otimismo e mais um pouco. Duas empresas do setor de varejo se destacam nesse perfil: Lojas Quero-Quero e Petz. Ambas são do segmento Novo Mercado da Bovespa, entregam bons retornos sobre capital investido, pertencem a setores mal representados na bolsa atualmente e prometem praticamente triplicar de tamanho na próxima década, amparadas pela ideia de que vendem produtos com grande potencial de crescimento de vendas no Brasil: material de construção e produtos para animais de estimação.

Para quem já tem alguns anos de mercado, essas características remeterão a sucessos clássicos da última onda de ofertas iniciais de ações no Brasil: Ultrapar, Lojas Renner, Porto Seguro, Localiza, etc. Todas entregaram evolução parecida com o que o mercado espera para Quero-Quero e Petz. As ações de quase todas tiveram ótimo desempenho desde seus respectivos IPOs. Hoje, com o mercado farto de liquidez e um custo de oportunidade baixíssimo (isto é, juros baixos), não falta investidor querendo participar das histórias da Quero-Quero e Petz, mirando replicar o sucesso destes exemplos. Com isso, as ações da Quero-Quero negociam a 5.0x patrimônio líquido. Se assumirmos que suas lojas existentes deveriam negociar a 4,0x patrimônio (esse seria o múltiplo justo pelo modelo de Gordon se as lojas existentes estivessem maduras), uma conta de chegada mostra que implicitamente o mercado está pagando um múltiplo bem maior pelo capital arrecadado no IPO: 6,55x. O mercado está dizendo que a Cia conseguirá multiplicar o caixa levantado por 6,55x no futuro. A Petz é parecida: negocia a 8,8x patrimônio líquido, o que indica um múltiplo pago pelo o novo capital a ser empregado pela empresa de 12,8x. É possível gerar tanto valor? É sim. Se é provável, é difícil dizer. Vale pagar para ver? Acreditamos que não, dado o risco de execução (mais sobre isso abaixo) e a chance não desprezível de que o maior vento de cauda para tais múltiplos, os baixíssimos juros atuais, não durem para sempre.

Se o vetor é crescimento, quanto ele vale?

Para atingir as metas de crescimento da próxima década, Quero-Quero e Petz terão que abrir 70 e 35 lojas/ano, respectivamente. Até 2025, ambas terão o dobro do número de lojas que tinham em 2019. Até 2030, terão o triplo. O processo envolve um período inicial de investimento, seguido por amadurecimento das lojas e retorno ao fluxo de caixa positivo. Assumindo que no final do ciclo de investimento as novas lojas estejam maduras e com boa rentabilidade, ambas empresas terão fluxo de caixa positivo, porém tímido. No caso da Petz, o fluxo de caixa anual após crescimento (2030) deve representar ~7% do valor das ações em bolsa hoje. No caso da Quero-Quero, 10%. Esse é o cenário de sucesso. Eventuais percalços no caminho poderiam deixar ainda mais distante o dia em que Petz e Quero-Quero voltem a ter fluxo de caixa positivo. Além disso, não podemos descartar desafios relevantes, como crises macroeconômicas, uma piora do ambiente competitivo ou regulatório, ou até mesmo erros de execução do plano. Veja, se tudo der certo, o potencial gerador de caixa é baixo e distante. Se pouca coisa dar errado, o potencial já fraco fica bem ruim. Se algo relevante ameaçar o plano de execução, todo o sonho da abertura de capital pode virar um verdadeiro pesadelo. O espectro de potenciais resultados no ano 2030 para ambas empresas é amplo. Vendo que no cenário otimista o fluxo de caixa seria baixo, podemos afirmar que a relação risco/retorno de comprar as ações hoje é ruim. Dando tudo certo, há pouco a ganhar. Dando tudo errado, há muito a perder. Na Versa, onde o estilo Value Investing domina, evitamos esses tipos de investimento.

Riscos de execução – não é só fazer Ctrl-C Ctrl-V de lojas

Quando o ambiente de mercado é favorável, crescer pode ser uma forma relativamente fácil de gerar valor. Nós escrevemos aqui sobre o sucesso da rede de postos Ipiranga em fazer exatamente isso entre 2007 e 2017, período em que a Cia conquistou uma tremenda reputação de boa empresa. Mas quando o ambiente de mercado piorou para o negócio da Ipiranga, com a mudança na política de preços da Petrobras, os resultados da empresa pioraram de repente, e as ações tiveram queda forte na bolsa. Essas mudanças de rumo nos negócios de empresas com ações caras são importantes, pois prejudicam concomitantemente o resultado da empresa e seu valuation na bolsa. Um exemplo usando o múltiplo Preço/Lucro: Imagine uma boa empresa que negocie em um múltiplo alto de 22x P/L. Agora imagine que essa mesma empresa sofre uma surpresa negativa nos seus negócios que causa uma queda de lucro de -30% e levanta preocupações sobre o futuro do seu negócio. O resultado provável é que a ação passará a negociar a múltiplos mais baixos. Se o múltiplo, assim como o lucro, cair -30% (indo para 15,8x) o preço da ação precisa cair -50%. Nesse evento, o impacto no preço das ações é quase o dobro do impacto no lucro da empresa. Foi exatamente isso que ocorreu com a Ultrapar (os números são reais).

Há riscos semelhantes na Quero-Quero e Petz? Esses riscos são conhecidos?

Como se trata de duas empresas relativamente novas para o mercado, talvez seja cedo demais para dizer. Das duas, a que mais nos chamou atenção para riscos de execução foi a Quero-Quero, dado sua extrema dependência em crédito de qualidade questionável para executar seu plano de expansão. Mais de metade das vendas da Quero-Quero são financiadas por um cartão de crédito proprietário da Cia. Presente em cidades minúsculas do interior, a maior parte dos clientes da empresa são desbancarizados. Sem bancos para dar crédito para seus clientes, a Quero-Quero os financia com uma solução de crédito própria. Mais da metade desse crédito é financiado por um FIDC (fundo de investimento em direitos creditórios) do qual a empresa é cotista subordinada. Os outros cotistas do FIDC aportam dinheiro no FIDC para que o FIDC compre da Quero-Quero os recebíveis do cartão. Apesar de ser cotista do FIDC, a Quero-Quero não aporta dinheiro próprio no FIDC. Ela aporta mais recebíveis. A estrutura dá a entender que o crescimento futuro da Quero-Quero, que exigirá o crescimento do FIDC, não exigirá montante relevante de capital próprio pela Cia. Isso pode ser verdade. Mas em um cenário de credit crunch, quando o custo do crédito sobe e as fontes de crédito secam, todo o arcabouço pode ser colocado em risco. Sem crédito, a queda nas vendas seria dramática (-60% no pior cenário). Caindo as vendas, cai a entrada de caixa. Sem caixa, a empresa pode ter dificuldades em manter uma estrutura que pode chegar a 800 lojas até 2030. E como cotista subordinado do FIDC, a Quero-Quero seria a última a ser paga com a monetização (provavelmente incompleta) dos recebíveis do fundo em cenário de stress econômico e de crédito no país. Vale dizer que, nas centenas de cidadezinhas onde a Quero-Quero pretende crescer, a falta de crédito provavelmente tem bom motivo. Se os bancos, que sabem dar crédito, não estão ali financiando os consumidores, provavelmente é porque o perfil de renda e emprego nessas regiões é ruim mesmo. Na Petz não identificamos algo que chamasse tanta atenção, o que não significa ausência de risco de execução. A empresa pode enfrentar diversos desafios no seu ambiente competitivo, na escolha de pontos para abertura de lojas e no cenário macroeconômico.

Não podemos esquecer a disciplina, mesmo nos bull markets

Não estamos apostando contra Quero-Quero nem a Petz. Estamos só exemplificando que, mesmo com algum grau de otimismo com a perspectiva para o mercado de renda variável e ativos de risco à frente, empregamos sempre rigor e disciplina na seleção de ativos para nossos fundos. Falamos dessas duas empresas pois elas representam um fenômeno comum na era atual de IPOs: aproveitar o momento atípico de juros extremamente baixos para vender ao mercado a possibilidade de surfar uma grande história de crescimento, mesmo que o retorno oferecido seja baixo. Escolhemos ficar de fora dessa onda. Achamos que há melhores oportunidades na bolsa hoje (veja nossas cartas mensais e artigos periódicos para conhecer as maiores posições dos nossos fundos). Iremos acompanhar de perto as estreantes da bolsa em 2020, aguardando o momento certo para investir, se um dia ele vier.

Disclaimer: As opiniões, análises e informações contidas nesse artigo não constituem recomendação de investimento, nem tampouco material de oferta para subscrição, compra ou venda de títulos ou valores mobiliários, instrumentos financeiros, cotas em fundos de investimento ou qualquer produto ou serviço de investimentos. Declarações contidas neste artigo relativas às perspectivas dos negócios, projeções de resultados operacionais e financeiros, bem como referências ao potencial de crescimento das companhias citadas, constituem meras previsões, baseadas nas expectativas do analista responsável em relação ao futuro. Essas expectativas são altamente dependentes de fatores incertos, como o comportamento do mercado, da situação econômica do Brasil, da indústria e dos mercados internacionais. Portanto, cada declaração aqui escrita está sujeita a mudanças, e não deve ser utilizada como insumo para qualquer estratégia de investimento pessoal ou institucional. A Versa Gestora de Recursos Ltda., seus sócios e colaboradores, por meio dos fundos de investimentos da casa, podem ou não estarem posicionados em títulos e valores mobiliários de emissores aqui mencionados, de forma que eventualmente influencie nas opiniões e análises aqui presentes.